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O papel dos Estados Unidos na formulação da Política de Drogas mundial

Autora: Natália Nunes

São Paulo, 06 de Abril de 2018.

O consumo de substâncias psicotrópicas está presente no cotidiano humano desde os primórdios, para fins médicos e medicinais. Antigas civilizações e comunidades indígenas utilizavam plantas psicotrópicas como o ópio, a folha de coca e a maconha para curar doenças, afastar espíritos maus, obter sucesso nas caçadas e nas conquistas e atenuar a fome e o rigor do clima de determinadas regiões. Também eram usadas para celebração de rituais religiosos, culturais, sociais, estratégico militar, entre outros (LESSA, 1998; SEIBEL; TOSCANO, 2001). Somente no começo do século XX esse consumo se tornou alvo de tratamento político pelos Estados. Este tratamento se deu ao longo de encontros diplomáticos que construíram um Regime Internacional de Proibição ao consumo, venda e produção de substâncias psicotrópicas, formado pelas: Convenção Única da Nações Unidas de 1961, Convenção de Substâncias Psicotrópicas de 1971 e Convenção contra o Tráfico Ilícito de 1988, no âmbito na Organização das Nações Unidas (ONU).

O papel dos Estados Unidos foi, ao longo dessa construção, definidor da abordagem mais comum (proibitiva) entre os Estados. Atualmente, a preocupação com o tema das drogas e os problemas atribuídos ao seu envolvimento, como violência urbana e formação de organizações criminosas internacionais, só cresce. É um tema polêmico, pois envolve questões morais, médicas, de direitos humanos e jurídicas.

Uma forma de avaliar a questão em termos teóricos é utilizar a teoria de Securitização, que reside no processo pelo qual um determinado objeto é tratado como uma ameaça existencial e apresentando como questão de segurança, saindo da “baixa política” para “alta política” e admitindo ações de exceção. Tsoukala (2008) analisa a dimensão semântica do discurso norte-americano, em que o problema das drogas é definido por meio do termo “guerra”, implicando a urgência do combate em um contexto de excepcionalidade. Tal exceção já dura quase cinco décadas e legitima a aceitação de “eventuais” sacrifícios e de uma liderança política.

As discussões sobre leis para controle de drogas não eram originárias nem restritas ao ambiente diplomático ou legislativo. Ao contrário, elas reverberavam posturas provenientes de grupos sociais mais ou menos organizados em ligas ou redes que se espalhavam pelos Estados Unidos, brandindo palavras de ordem contra a ameaça que a “imoralidade” e os “vícios” traziam para a sociedade. Agremiações como a Liga Anti-Saloon, fundada em 1893, defendiam a moralização do país por meio de medidas legais que pusessem em marcha políticas de repressão às práticas tidas como imorais ou corruptoras das virtudes puritanas (comedimento, castidade, sobriedade, religiosidade).

O governo dos Estados Unidos passou a construir um grande e especializado aparato repressivo para o combate às drogas proibidas ou controladas. No ritmo em que cresciam as máfias dedicadas ao tráfico de psicoativos ilícitos, desenvolvia-se uma potente estrutura repressiva com milhares de agentes e generosas verbas estatais (McAllister, 2000). Com o avançar dos anos, a listagem de drogas proibidas ou de uso bastante restrito, aos “usos médicos”, foi alargada.

Em 1972, o então presidente dos EUA, Richard Nixon, proclamou que “as drogas” eram o novo inimigo número um do país. Nixon sustentava que para enfrentar tão ameaçador inimigo era urgente declarar “guerra às drogas”, entendendo a necessidade de combater traficantes e consumidores em solo norte-americano e também no exterior. Assim, ao então presidente elevou a questão do âmbito da “baixa política”, que segue as regras e os processos usuais da democracia, para a “alta política”, que se caracteriza pela urgência, prioridade e ação de vida ou morte (BUZAN et al., 1998, p. 21-26).

O discurso de Guerra às Drogas permitiu ações excepcionais em nome da defesa do Estado e da sociedade, tanto no plano interno (como o endurecimento das penas para traficantes e usuários, e consequente aumento do encarceramento) quanto no plano internacional, com intervenções policial-militares em países estrangeiros (RODRIGUES, 2008; HERSCHINGER, 2011).

Em face da extrema resiliência do narcotráfico e da mobilidade da produção de drogas e precursores, a vitória na Guerra às Drogas seria efêmera e onerosa, vindo a médio prazo a agravar seriamente o problema nos EUA e no hemisfério. Dispersou geograficamente a produção do ópio – até então concentrada em áreas tradicionais – para outros países em desenvolvimento, dificultando ainda mais seu controle. O orçamento governamental para o combate às drogas aumentou de forma tão exponencial (US$ 66 milhões em 1969, US$ 796 milhões em 1973 e US$ 1 bilhão em 1974), que os EUA começaram a tornar-se um complexo industrial do abuso de drogas (THOUMI, 2002, p. 80).

Além disso, podemos considerar a abordagem proibitiva como falha pois, em 2003, cerca de 185 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos de todo o mundo (4,7% da população mundial nessa faixa etária) haviam consumido alguma droga ilícita nos 12 meses anteriores; em 2014, essa parcela tinha aumentado 33%, chegando a 247 milhões de pessoas (5,2% da popula­ção mundial nessa faixa etária). O número de pessoas dependentes de drogas “aumentou desproporcionalmente”: de 27 milhões em 2013 para 29 milhões em 2014. Ao mesmo tempo, em 2014, o cultivo ilegal de papoulas de ópio havia subido para o nível mais alto já registrado, atingindo quase 320 mil hectares no mundo inteiro; a produção de cocaína subiu 38% entre 2013 e 2014 (Relatório Mundial sobre Drogas 2004/14, Nações Unidas).

As penas severas para produtores, distribuidores e usuários não alteraram a oferta ou a demanda. A criminalização também resultou em prisões cheias de pequenos traficantes e usuários de drogas, violações dos Direitos Humanos, instituições judiciais relacionadas com a aplicação das leis corroídas e corrompidas, bem como a expansão do poder e dos lucros dos cartéis e quadrilhas de todo o mundo.

Com isso, os próprios americanos estão mudando sua regulamentação interna a respeito das drogas. Atualmente, alguns estados já possuem leis bem formuladas no tratamento da cannabis. A Califórnia foi o primeiro Estado a aprovar o uso medicinal da maconha, em 1996. Desde então, 28 Estados fizeram o mesmo. Outros seis Estados aprovaram o comércio e consumo da maconha recreativa: Washington, Oregon, Nevada, Alasca, Massachusetts e Maine (esses últimos dois começam em 2018), além de Washington DC.

A liderança dos EUA ao longo dos anos para que o consumo dessas substâncias fosse proibido agora está se transformando em políticas mais abertas e voltadas para o lucro, se o papel de líder normativo continuar em vigor, é esperado que essa mudança de paradigma interna nos EUA se estenda para o debate internacional. Apesar da maioria das políticas serem voltadas apenas para a cannabis, já pode ser considerado um avanço, visto que o uso dessa substância foi historicamente carregado de proibição e preconceito. Assim, políticas de redução de danos e regulamentação se tornam alternativas também para outras substâncias.

Natália Nunes é Doutoranda pelo NUPRI e pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP).

REFERÊNCIAS

BUZAN, B., Wæver, O.,&De Wilde, J. (1998). Security: A new framework for analysis. Boulder, CO: Lynne Rienner.

HERSCHINGER, Eva. Constructing global enemies: hegemony and identity in international discourses on terrorism and drugs prohibition. Nova York: Routledge, 2011.

LESSA, M. B. M. F. Os paradoxos da existência na história do uso das drogas. 1998. Disponível em www.ifen.com.br/artigos.htm

MCALLISTER, William B. Drug Diplomacy in the Twentieth Century. Nova York, Ed. Routledge, 2000.

NAÇÕES UNIDAS. Relatório Mundial sobre Drogas 2004/14, Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). 2014. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//noticias/2014/06/World_Drug_Report_2014_web_embargoed.pdf 

RODRIGUES, Thiago. Tráfico, Guerra, Proibição. Drogas e Cultura: novas perspectivas. Edufba. Salvador, 2008.

SEIBEL, S. D.; TOSCANO, A. Dependência de Drogas. São Paulo: Atheneu, 2001.

THOUMI, Francisco. El Imperio de la Droga. Narcotráfico, Economia y Sociedad en los Andes. Bogotá: Planeta, 2002.

TSOUKALA, A. Boundary-creating Processes and the Social Construction of Threat. Alternatives: Global, Local, Political. Volume 33, Issue 2, April 2008.